Crónicas e opinião
Obrigado por tudo, Francisco
“No dia em que Francisco faleceu, André Ventura agradeceu-lhe “por tudo”. O mesmo André Ventura que, não muito tempo antes, acusou Francisco de prestar “um mau serviço ao Cristianismo” e de contribuir “para destruir as bases do que é a Igreja Católica na Europa”.”

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Francisco partiu. O Papa que tentou e conseguiu reaproximar a Igreja das pessoas já não está entre nós. Mas deixa um legado disruptivo, fundado numa mundivisão mais próxima dos ensinamentos de Jesus Cristo, que colocou os pobres, os migrantes ou as vítimas de abusos sexuais e da violência armada no centro da sua acção. Para grande irritação dos extremistas que instrumentalizam o Cristianismo como arma de arremesso na sua cruzada por um Ocidente mais autoritário, mais intolerante e menos livre.
A disrupção causada por Francisco, contudo, não se esgota na narrativa. Longe disso. Francisco foi o primeiro jesuíta e o primeiro latino-americano a liderar a Igreja Católica. A lista de visitas pastorais incluiu países periféricos e pobres como a Albânia, o Sri Lanka, a República Centro Africana, o Bangladesh ou Myanmar. Visitou Lampedusa e ali rezou pelos migrantes que se afogaram no Mediterrâneo. Foi o primeiro papa a visitar o Iraque. Apostou no reforço do diálogo inter-religioso com ortodoxos, muçulmanos, judeus e budistas. E não teve medo de agarrar o touro dos abusos sexuais na Igreja pelos cornos, não se limitando a abordar o tema, mas tomando medidas efectivas para responsabilizar os membros do clero envolvidos.
Francisco foi um papa corajoso.
Não se acomodou ao status quo de uma instituição naturalmente conservadora.
Aliás, a sua coragem foi tal que abriu um precedente inesperado, permitindo que os padres católicos abençoassem casais do mesmo sexo e manifestando-se contra a negação da comunhão a políticos católicos que defendessem o direito ao aborto. Não porque fosse defensor da homossexualidade ou da prática do aborto, contra a qual de resto sempre se opôs, mas porque entendia com clareza a mensagem de tolerância que está na génese do Novo Testamento. Uma mensagem que muitos católicos parecem não ter percebido ainda, por muitos terços que rezem. Porque ler a Bíblia dá muito trabalho.
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Não menos corajosa foi a atitude perante alguns dos grandes problemas do nosso tempo, que, desde sempre, levaram muitos membros do clero a optar pelo conforto do silêncio.
Francisco não teve receio de mostrar a sua oposição à guerra, na Ucrânia como na Palestina, de condenar o extremismo religioso, assinando, para o efeito, uma declaração conjunta com o líder xiita iraquiano Ayatollah Ali al-Sistani, ou de censurar publicamente os crimes de guerra cometidos contra populações civis, perpetrados por tiranos como Putin ou Netanyahu.
De igual forma, foi crítico dos desequilíbrios gerados por uma economia mundial ao serviço de uma pequena elite, cujas fortunas aumentam a ritmos alucinantes e sem precedentes, enquanto a miséria se espalha e reproduz, apesar de nunca, em momento algum da história, tanta riqueza ter sido produzida.
Tal postura valeu-lhe acusações bizarras e sem nexo, como o epíteto de “comunista”, como se só aos discípulos de Marx e Engels coubesse defender e acreditar numa sociedade onde é possível uma redistribuição da riqueza mais equitativa que melhore as condições de vida dos mais pobres, sem que isso belisque a vida faustosa dos bilionários.
Francisco reconheceu também a urgência dos problemas climáticos que afectam o mundo, considerando que as vozes dos mais jovens, que herdarão o planeta, deviam e podiam ser ouvidas. Defendeu políticas mais cristãs para migrantes e refugiados. E afastou-se – e bem – das guerras culturais entre esquerda e direita. Francisco foi um não-alinhado. E isso valeu-lhe a oposição e o ódio dos sectores que, na política, se arvoram defensores do Cristianismo. Pese embora sejam a sua total negação.
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A extrema-direita odiou o Papa Francisco. E o seu ódio é a prova factual de algo que o politicamente correcto impede os extremistas de direita de assumir: que o seu Cristianismo é falso. Que não passa de uma construção política desonesta, com o propósito único de arrebanhar eleitores verdadeiramente devotos e/ou conservadores.
Javier Milei, presidente da Argentina e um dos grandes ídolos de dirigentes e militantes do Chega, chamou-lhe – perdoem-me a linguagem, mas quero ser objectivo – “esquerdista filho da put*”. E, a propósito da defesa de mais justiça social, escreveu o seguinte tweet: “Seria bom se começasses a distribuir as riquezas do Vaticano aos pobres, seu pedaço de merd*”. Eis um excelente exemplo dos valores cristãos que a extrema-direita diz defender.
Sendo o exemplo de Milei um exemplo extremo, ele ilustra bem os choques que a agenda de Francisco gerou junto de políticos como Santiago Abascal, Jair Bolsonaro, Marine Le Pen, Matteo Salvini ou Donald Trump. Porque, ao contrário dos restantes, Milei não se esconde por trás do politicamente correcto para mascarar o seu extremismo. Assume-o. E Francisco foi uma pedra no sapato dos extremistas que, repito, não são devotos ou sequer cristãos: são egomaníacos que usam todos os meios para atingir os seus fins.
E o Cristianismo é, para estas pessoas, um meio como outro qualquer. Um meio que serve para normalizar o discurso de ódio, a acumulação sem limites de riqueza por parte de uma pequena elite, a destruição do ambiente como forma de potenciar essa acumulação, a destruição das instituições e a sua substituição por um poder autoritário sob a forma de oligarquia, a pobreza como forma de subjugação ou a erradicação dos direitos humanos. E, na verdade, o Cristianismo rejeita todas estas coisas. Mas estas pessoas estão dispostas a reescrever as palavras do Senhor. O pecado mortal não os demove.
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Se acharam as palavras de Milei demasiado agressivas, reparem no que escreveu a actriz Maria Vieira, deputada municipal do CH, na sua conta no Twitter. Eram 10 da manhã de 21 de Abril e o corpo de Francisco ainda estava quente:
“Bergoglio foi um comunista do capeta e um defensor de esquerdistas, de muçulmanos, de bandidos, de «picolhos» e de «travecos”. Que Deus lhe perdoe.”
Como pode um cristão despedir-se do Santo Padre desta forma?
Que ódio é este, que mais parece saído da boca de um Taliban?
Mas, lá está, antes a honestidade de Maria Vieira, que deixa a nu o seu verdadeiro carácter, do que a habitual hipocrisia do seu líder. No dia em que Francisco faleceu, André Ventura agradeceu-lhe “por tudo”. O mesmo André Ventura que, não muito tempo antes, acusou Francisco de prestar “um mau serviço ao Cristianismo” e de contribuir “para destruir as bases do que é a Igreja Católica na Europa”.
Nunca vou compreender como é possível alguém achar que Ventura ou outro extremista de direita representa os valores do Cristianismo, como se Jesus tivesse pregado o ódio aos imigrantes e a vassalagem aos oligarcas. Alguém fez de conta que leu a Bíblia, ou então saltou Mateus 25:35 e encontro com os vendilhões do templo “sem se aperceber”.
Francisco era a antítese de políticos como André Ventura e de toda a propaganda de ódio e divisão da extrema-direita. Fez um trabalho imenso pela humanidade, mas os novos fascistas nunca o perdoarão. Perdoar seria demasiado cristão para eles.
Descansa em paz, Francisco.
E obrigado por tudo o que fizeste por nós.