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Crónicas e opinião

O Fim da História?

Hoje, as democracias liberais, nas suas mais variadas formas, enfrentam um inimigo comum. E esse inimigo assume várias formas, aparentemente diferentes, mas com o mesmo propósito.

João Mendes

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Em 1992, Francis Fukuyama publicou uma das obras fundamentais da ciência política contemporânea: O Fim da História e o Último Homem.

De forma sucinta, Fukuyama argumentava que, com o colapso da União Soviética, o combate ideológico que havia marcado as décadas anteriores teria chegado ao fim, com o triunfo da democracia liberal e do modelo económico assente no mercado livre. Eram estes os dois pilares do Fim da História. O Último Homem era o democrata ocidental.

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Nas duas décadas que se seguiram, a tese de Fukuyama parecia à prova de bala. Os EUA assumiram o papel de superpotência hegemónica, a democracia liberal atravessou a Cortina de Ferro e expandiu-se até às fronteiras da recém-formada Federação Russa, e, nos restantes continentes, vários regimes ditatoriais foram derrubados e substituídos por democracias.
No Ocidente, os direitos, liberdades e garantidas expandiram-se, as economias cresceram, o poder de compra aumentou, a qualidade de vida também e a estabilidade política e social parecia sólida. O triunfo do Último Homem parecia mais do que evidente.
Até ao dia em que a bolha rebentou.

A crise financeira global iniciada em 2007, no coração da casa-mãe do capitalismo, deixou a nu as fragilidades de um modelo económico que produzia riqueza à mesma velocidade que aprofundava desigualdades.

E se, até então, as desigualdades podiam ser colmatadas com políticas sociais, que absorviam parte do problema sob a forma de saúde, educação, segurança social ou habitação, o que se seguiu ao colapso do Lehman Brothers foi brutal. Desemprego em massa, falências em catadupa, serviços públicos subfinanciados e uma brutal transferência de renda dos mais desfavorecidos para os super-ricos, acompanhada de privatizações em saldos e do desmantelamento de parte do estado social europeu, empurraram milhões para a miséria ou para situações de sobrevivência.

E como se isto não fosse já suficientemente problemático, a crise financeira abriu o flanco ao populismo que, sendo inicialmente corporizado pela esquerda radical, foi rapidamente sequestrado por uma nova direita, bem financiada e estruturada, empenhada em reciclar os velhos fascismos, cavalgando o descontentamento para apontar baterias ao alegado excesso de democracia e liberalismo.

O processo consolidou-se ao longo da década passada, com a ascensão de forças políticas de cariz autoritário, com simpatia pela gestão de autocratas como Vladimir Putin, que neles viu os destinatários ideais para o soft power russo. A Lega Nord, de Matteo Salvini, ou a Frente Nacional, de Marine Le Pen, foram dois dos muitos partidos de extrema-direita directamente financiados pelos milhões do Kremlin. Compreende-se: as agendas dos partidos irmãos do Chega são ideologicamente iguais à do Rússia Unida. O partido de André Ventura não é excepção.

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A chegada de Donald Trump à Casa Branca, em 2016, marcou uma viragem no equilíbrio da balança de poder global. Pela primeira vez, os EUA produziram uma administração mais próxima das autocracias do que das democracias europeias.

Trump hostilizou o Velho Continente, com ameaças permanentes e aproximações aos opositores do projecto europeu, e promoveu relações diplomáticas com tiranos como Kim Jong-un ou Putin. O encontro dos presidentes russo e americano em Helsínquia, em 2018, foi particularmente bizarro, com Trump a defender Putin das investigações em curso do FBI. Chegava-lhe a palavra do ditador russo, alegava o então presidente dos EUA.

Trump acabaria por falhar a reeleição em 2020. Nas eleições mais participadas e renhidas de sempre nos EUA, Joe Biden levou a melhor. E foi então que Trump mostrou quem verdadeiramente era. Sem provas ou factos que o demonstrassem, construiu a narrativa da fraude eleitoral, para, de seguida, convidar os seus apoiantes a marchar sobre o Capitólio, na tentativa falhada de golpe de Estado de 6 de Janeiro de 2021.

Se dúvidas restassem, ficou claro, naquele dia, que Trump queria um Fim da História diferente. E se as mentiras constantes, as notícias falsas, a desinformação e as conspirações mais alucinadas faziam já parte do seu ADN, os anos que se seguiram serviram para deixar ainda mais claro que Trump está mais próximo de Hitler do que de Roosevelt. Desde defender o fuzilamento de opositores como Liz Cheney, até ao elogio de figuras como Putin, passando pelos insultos a veteranos de guerra ou à pretensão de suspender as instituições da democracia e o sistema de “checks and balances”, tudo indica que uma segunda presidência de Trump será o que o próprio prometeu: vingativa, violenta e autoritária.

E um convite aos pequenos Putins europeus para fazer o mesmo. Se Trump ganhar as eleições, não é só a democracia americana que está ameaçada. É a nossa também.

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Se eu sou apreciador das qualidades de Kamala Harris e entendo que ela é a melhor escolha para porta-estandarte das democracias liberais?

Nem por isso.

Choca-me, até, que o Partido Democrata tenha sido incapaz de antecipar as debilidades de Biden e ter procurado, mais cedo, um candidato ou candidata mais competente, articulado e carismático para o embate com Trump.

Mas Kamala é a solução possível perante uma ameaça maior.

A alternativa a Kamala Harris é um racista, misógino e um javardo que pagou milhares de euros para ter relações sexuais com uma actriz de filmes pornográficos enquanto a esposa estava em casa, grávida do seu filho mais novo.

É fã e amigo dos piores ditadores do planeta. Tem ao seu lado supremacistas brancos, neo-nazis e fundamentalistas evangélicos, os Talibans do Cristianismo.

Defende abertamente mais armas na rua, num país em que há mais tiroteios mortais do que dias num ano.

É um criminoso condenado e com múltiplos processos em curso. Muitos dos crimes foram cometidos durante a sua presidência. Se for eleito, contudo, estará protegido por uma nova e absurda lei do Supremo, que Trump controla, e que basicamente dá imunidade total ao presidente. Ou seja, transforma-o num ditador de facto.

Podia ficar nisto e encher todas as páginas deste jornal com os abusos de poder de Trump, ou com as muitas manifestações de total desprezo pelos fundamentos mais básicos da vida em democracia.

Mas o ponto aqui é este: quando a democracia está em causa, lutamos com as armas que temos. E a arma que temos, para que o Fim da História não seja outro, chama-se Kamala Harris.

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Quando Hitler era a ameaça, a Europa e o mundo foram salvos por uma aliança improvável entre comunistas soviéticos, capitalistas americanos, conservadores britânicos e progressistas franceses. Situações limite requerem soluções que ultrapassam a nossa imaginação.

Hoje, as democracias liberais, nas suas mais variadas formas, enfrentam um inimigo comum. E esse inimigo assume várias formas, aparentemente diferentes, mas com o mesmo propósito.

Sejam os comunistas chineses, a extrema-direita putinista com todos os seus satélites europeus, as monarquias absolutas do Golfo, os fundamentalistas evangélicos do Brasil ou os supremacistas brancos da América, os objectivos são os mesmos: acabar com a separação de poderes, abater o Estado de Direito, subjugar a população, submeter-nos à teocracia.

Todos os democratas, sejam progressistas de esquerda, conservadores centristas ou ultraliberais, estão condenados a entender-se ou capitular. Um socialista democrático do Bloco ou um liberal clássico da IL estão, gostemos ou não, na mesma barricada. Pela democracia, contra o autoritarismo. Apesar das visões diferentes, o seu Fim da História é o mesmo. Ou deveria ser.

(este texto foi escrito na noite anterior à das eleições americanas)

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