Crónicas e opinião
O falso argumento da inveja
Daqui por 100 anos, quando já ninguém se lembrar de 99% das pessoas que habitaram o planeta durante o nosso tempo de vida, Cristiano Ronaldo será um dos poucos cujo nome perdurará entre as massas. A menos que uma variante avançada de populismo consiga proibir o futebol. Acho pouco provável.
Tal estatuto não o coloca acima da crítica. Excepto, talvez, em regimes totalitários, como aquele onde o capitão da selecção compete e reside.
Usar o falso argumento da “inveja” para desarmar quem defende que Ronaldo devia ter sido substituído no jogo contra a França é, no mínimo, injusto. Até porque meio mundo tem inveja de Ronaldo. Seja pela carreira magnífica no futebol, pela fortuna, pela boa forma física ou pelo estatuto de superestrela mundial. O habitante do planeta com mais seguidores combinados em todas as redes sociais.
Existem muitos motivos para ter inveja de Cristiano Ronaldo. Estes são apenas alguns. Nenhum o coloca acima da liberdade de alguém dizer:
– Eu acho que Cristiano Ronaldo não tem lugar na selecção.
Eu não sei se esta expressão corresponde ou não à verdade. Corresponderá à verdade de uns, não tanto à de outros, não é uma ciência exacta. No meu caso, assumo não ter conhecimento técnico para dizer que Ronaldo tem ou não lugar na equipa.
Se devia ter sido substituído contra a França? Acho que sim. Lamento, mas foi um jogador a menos.
Se devia ter sido convocado? Parece-me que sim. Ronaldo tem lugar. Se não for para mais, que seja para assustar os adversários e pôr a defesa em sentido.
Mas esta ideia de andar de archote virtual atrás de quem defende que Ronaldo devia ter sido substituído, ou mesmo ficado no banco, e rotulá-lo de “invejoso” não faz sentido. O estatuto de melhor futebolista da história de Portugal não o torna imune à crítica. Sobretudo quando aparenta ser justa. E por muito que isto ainda incomode muita gente, é preciso ter a liberdade de afirmar que sim, Cristiano Ronaldo devia ter sido substituído contra a França. Tínhamos Diogo Jota e Gonçalo Ramos no banco.
Vamos imaginar, sem pensar no fraco argumento da “inveja”, que Martinez começava com Ronaldo no banco e Gonçalo Ramos titular. O avançado do PSG podia marcar, podia não marcar, mas sempre daria trabalho à defesa francesa. É mais fresco, mais móvel e mais rápido que Cristiano. Aos 70 minutos, Ronaldo entrava para o substituir e consumia a bateria toda naqueles 20 minutos, pondo a defesa adversária, cansada, em alarme máximo. É velho, mas é o Ronaldo. E se apanha a bola a jeito, só precisa de um tiro.
Podia ter sido diferente?
Podia.
E não, tal opinião não tem necessariamente que significar inveja. Pode muito bem ser uma simples constatação da realidade.
O falso argumento da inveja não é um exclusivo do futebol. Na política, por exemplo, é um expediente muito comum entre aqueles que, estando no poder, não querem lidar de frente com as críticas à sua gestão.
Quando um político é acusado de fazer um negócio danoso para a coisa pública, ou benéfico apenas para os seus interesses, refugia-se muitas vezes numa alegada inveja que o seu detractor sente pela sua carreira.
Na verdade, o acusado sabe que a crítica é legítima e válida. Mas como contra factos não há argumentos, puxar a cartada da inveja permite que os seus apoiantes abandonem a razão para proceder ao linchamento do mensageiro. E funciona, porque a inveja é um sentimento que desperta reacções extremadas, que polariza.
E enquanto discutimos na base desta (i)lógica demagógica, o essencial passa para segundo plano. Seja o sub-rendimento de Ronaldo ou os desmandos de um político corrupto.
Faz falta ter a coragem de debater com base em factos e não em emoções primárias e irracionais. Sob pena de regredirmos enquanto espécie. Ronaldo não será menos extraordinário se o fizermos. E o escrutínio sobre a classe política será tremendamente mais eficaz.
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