Crónicas e opinião
Moção de Diversão
Ventura e o CH precisavam de respirar e este foi o balão de oxigénio possível. Não foi bem uma moção de censura: foi uma manobra de diversão.

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Luís Montenegro está em apuros. A polémica em torno da empresa de consultoria da sua família, que emergiu num dos momentos mais complexos da sua governação, após a queda do Secretário de Estado Hernâni Dias, entre outros casos bicudos relacionados com a nova Lei dos Solos, deixou o primeiro-ministro numa posição muito delicada.
Tal não o impediu de nomear Silvério Regalado para a Secretaria de Estado da Administração Local e Ordenamento do Território. Trata-se do antigo autarca de Vagos que, entre 2015 e 2021, celebrou cinco contratos por ajuste directo com a sociedade de advogados de Luís Montenegro, num valor superior a 200 mil euros.
Não havendo (ainda) forma de comprovar se existe alguma irregularidade ou conflito de interesses na ficha de Montenegro, alguns factos, entretanto conhecidos, não abonam em seu favor. A começar por algo tão simples como explicar que competências têm a sua mulher e filhos para gerir a Spinumviva e executar os serviços de consultoria que muito lucrativamente tem prestado. Aparentemente, nenhumas.
Tenho a convicção de que conheceremos novos desenvolvimentos sobre este caso em breve. Em ano de autárquicas, que precisa desesperadamente de ganhar, e com um governo frágil e sem apoio parlamentar para governar a seu bel-prazer, poderão estar a reunir-se as condições para a queda do executivo Montenegro. Resta saber se assistiremos a uma reedição de Cavaco Silva 1987, ou se teremos nova mudança de paradigma no hemiciclo.
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As polémicas em torno da Lei dos Solos e dos negócios de Luís Montenegro foram o pretexto perfeito para a moção de censura apresentada pelo CH. Ventura sabia-a morta à nascença, é um facto, mas parece-me evidente que contava com ela para desviar atenções da sucessão de casos em que viu o seu partido envolvido nas últimas semanas.
Miguel Arruda, o roubo de malas e a venda do material roubado a partir dos escritórios do CH na Assembleia da República.
O encontro sexual de Nuno Pardal Ribeiro com um miúdo de 15 anos a quem pagou 20€.
A ameaça de morte do conselheiro nacional João Rogério Silva ao militante António José Cardoso.
O deputado Pedro Pessanha acusado de violar um menor.
José Paulo Sousa apanhado a conduzir com 2,25 g/l de álcool no sangue.
E todos os outros casos que têm vindo a público, não apenas nas duas últimas semanas, mas nos últimos anos, que incluem acusações como participação económica em negócio e condenações graves como a do então dirigente de Braga, João Gomes, condenado no ano passado a 3 anos e meio de prisão com pena suspensa por extorsão agravada na forma tentada.
Delinquência em toda a linha.
Ventura e o CH precisavam de respirar e este foi o balão de oxigénio possível. Não foi bem uma moção de censura: foi uma manobra de diversão. Até porque o problema do CH não se esgota nestes e noutros casos de polícia. Há outro tema que envolve o partido, que está na ordem do dia, e sobre o qual convém falar o mínimo possível.
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A liderança do CH exultou com a eleição de Donald Trump. Grande parte dos seus dirigentes e eleitos usa as redes sociais para elogiar cada ordem executiva assinada pelo novo presidente. André Ventura foi mesmo a Washington, prestar tributo à sua referência ideológica, mas ficou à porta da tomada de posse.
Compreende-se o encanto. Trump é um farol e uma inspiração para a extrema-direita europeia.
O problema é que os nossos piores receios sobre a segunda vinda de Trump estão a confirmar-se de forma rápida e avassaladora.
As tarifas, as ameaças à soberania de aliados europeus, a tentativa hostil de condicionar a União Europeia, a morte anunciada da NATO, o ataque à Ucrânia e a Zelenskyy (que Trump apelidou de ditador não-eleito, o que contrasta com a simpatia e amabilidade que usa para falar de Putin e de outros tiranos como Kim Jong-un e Xi Jinping, que Trump sempre recusa apelidar de ditadores), o apoio à AfD (partido do qual até o CH se afastou), o desmantelamento em curso das instituições americanas e os milhares de milhões em alívios fiscais aos bilionários, enquanto preço dos medicamentos e das mercearias sobe de forma muito acentuada para os mais necessitados, enfim, todo um programa que era já expectável, e que, em larga medida, entra em choque com muito do que Ventura apregoa, sendo certo que o líder do CH é capaz de afirmar tudo e o seu contrário.
Seja como for, importa confrontar André Ventura e a direcção nacional do CH com a actualidade internacional. É tempo dos jornalistas e restantes partidos perguntarem aos dirigentes do CH se continuam a ter Trump como referência, e se é isso que defendem para Portugal, para a Ucrânia e para a Europa em geral.
Se estão de acordo com a normalização de Putin e da ocupação do Donbass, de Zaporijia, de Kherson e da Crimeia.
Se também defendem borlas fiscais para os mais ricos, o aumento dos preços de bens essenciais e o desmantelamento do estado social.
Se aceitam que bilionários não eleitos possam ter acesso à informação pessoal dos cidadãos existente nas bases de dados do Estado.
Se estão dispostos a tolerar a violação da soberania dos nossos parceiros e aliados.
Se estão alinhados com a tentativa de alterar a Constituição para perpetuar Trump no poder, ao melhor estilo de Putin ou Maduro.
Se estão confortáveis com saudações nazis.
Se são favoráveis à dissolução da NATO e da UE.
Donald Trump está a desmantelar a democracia norte-americana. E Ventura, sempre vocal, está estranhamente silencioso sobre o tema.
Estaremos perante a aplicação prática do ditado “quem cala consente”?
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No espaço de poucas semanas, Donald Trump destruiu alianças de décadas, promoveu uma caça às bruxas na administração pública, devassou a vida privada de milhões de americanos, fez cedências a Putin a troco de nada, enquanto exigia minérios a Kiev, e assinou a sentença de morte da NATO.
Mas poucos actos desta administração terão sido tão simbólicos como o voto contra a resolução apresentada pela Ucrânia e pela União Europeia na Assembleia-Geral da ONU, na passada Segunda-feira, que exigia o fim da agressão, a retirada total das tropas russas dos territórios ocupados e que reiterou o compromisso com a soberania, independência e integridade territorial da Ucrânia.
A resolução foi aprovada com os votos a favor de todas as democracias. Trump deu instruções aos seus representantes para votar ao lado da Rússia, Coreia do Norte, Burkina Faso, Sudão e Eritreia. A fina flor do totalitarismo mais violento do planeta.
Seria importante conhecer o posicionamento de André Ventura face aos novos aliados do seu herói americano. Será este tipo de alinhamento internacional que defende para o nosso país, caso venha um dia a ser primeiro-ministro? A julgar pelos amigos putinistas de Ventura, como Salvini ou Le Pen, convém ficar atento.