Ano 2010
«…Mas,/português da rua,/entre nós,/ninguém nos escuta,/…Sabes, ou alguém o sabe,/como morreu,/o valente Militão?…» Pablo Neruda, A Lâmpada Marinha (excerto)
Parte de mim pertence a essa terra quente e fria de Trás-os-Montes. A minha mãe nasceu em Mirandela. A minha família materna é transmontana. Emocionalmente nutro uma profunda ligação a Trás-os-Montes pela naturalidade de meu padrinho e pelo amor que ligava meu pai à região.
Era num quase êxtase que exclamava: «não há terra mais bela do que esta». Do recorte escarpado dos altos cumes às varandas vinícolas do património duriense a que Torga, de forma ímpar, descreveu como «socalcos que são passadas de homens titânicos a subir as encostas, volumes, cores e modulações que nenhum escultor, pintor ou músico podem traduzir, horizontes dilatados para além dos limiares plausíveis da visão», Trás-os-Montes dá uma carácter inconfundível ao solo pátrio. É também berço de gente boa.
No passado 16 de Janeiro, dou comigo e mais alguns amigos em deslocação a Murça, para curta, singela, mas sentida homenagem a Militão Ribeiro. Para quem não saiba, e serão muitos, não por culpa própria, mas antes por erro desta História apenas contada de reis e rainhas onde se omite quantas vezes o protagonista – o Povo e as pessoas oriundas do Povo – Militão Ribeiro, como bem esclarecia o panfleto espalhado na localidade pelo Partido Comunista Português, foi um corajoso combatente antifascista e um destacado dirigente comunista. Nasceu em 1896 e ainda novo emigrou para o Brasil, onde como operário têxtil começou a participar nas lutas da classe operária brasileira. Tornou-se dirigente sindical e aderiu ao Partido Comunista Brasileiro, onde, soube-o agora pelo texto do historiador Borges Coelho, lido pela voz de seu irmão Borges Coelho, músico, foi o «português» da coluna de Luis Carlos Prestes – o cavaleiro da Esperança – no livro de Jorge Amado. Expulso do Brasil pelo seu envolvimento nas lutas operárias, Militão Ribeiro consegue desembarcar e evitar a sua entrega às autoridades portuguesas, regressando à sua terra natal, Murça, onde, como testemunhou um seu conterrâneo, ajudava graciosamente as crianças e os jovens a aprenderem a ler e a escrever.
A morte de Militão Ribeiro, em 2 de Janeiro de 1950, foi «um crime lento, dos que não deixam vestígios», como relatou José Dias Coelho. Preso com Álvaro Cunhal em 25 de Março de 1949 (a sua quarta prisão) já se encontrava então com a saúde muito debilitada por longos anos de prisão e duas deportações no Campo de Concentração do Tarrafal. Sofria do fígado e dos intestinos. Todos os seus protestos para que lhe fosse dada a assistência médica necessária esbarraram com as negativas da polícia política. O severo regime prisional, a alimentação inadequada e a privação de tratamento começaram por agravar-lhe os padecimentos. Esteve semanas inteiras sem evacuar, sendo-lhe inclusivamente recusado um clister. Cada vez mais abatido, acabou por adoecer gravemente e resolveu fazer a greve da fome como protesto contra a falta de assistência médica e de uma dieta adequada. Até à sua morte, por inanição, percorreu um «longo calvário de padecimentos físicos e grandes perturbações nervosas». Mesmo assim nunca se esmoreceu a sua confiança no PCP, no povo e num futuro melhor. Sabendo da morte que o esperava, Militão Ribeiro preocupou-se, sempre, em comunicar ao Partido a sua inabalável confiança na vitória tendo escrito várias cartas à Direcção do PCP. Apenas duas chegaram ao seu destino – uma delas escrita com o seu próprio sangue. «Tenho sofrido o que um ser humano pode sofrer. Nem sei como tenho tido forças para tanto… Sei que venceremos. Desde sempre mantive a disposição de dar a vida pelo Partido em todas as circunstâncias, assim como a dou de uma forma horrível e cheia de sofrimento. Mesmo quase já um cadáver ainda fui esbofeteado por um agente. Dores, insónias, fome, agonias, tudo tenho sofrido nestes sete meses, quase sempre de cama, sem me poder mexer…»
Num outro extracto, declarava: «Tenho confiança que sabeis vencer todos os obstáculos e levar o povo à vitória, mantendo essa disciplina e controlo severo de uns sobre os outros em trabalho colectivo, como vínhamos fazendo e aperfeiçoando… Muito teria para dizer, mas as forças faltam-me. Fiz tudo o que pude pelo Partido, bem ou mal, foi sempre julgando que fazia o melhor. Adeus para todos com um abraço fraternal. Longa vida, longa liberdade, boa saúde e bom trabalho. Avante até à vitória final». «Que a minha morte traga novos combatentes à luta». Foi com homens de esta têmpera que, qual aço, foi forjado o PCP e, como ressalvaram Albano Nunes e Domingos Abrantes nesta evocação, a melhor homenagem a fazer à memória de Militão Ribeiro é o prosseguimento da sua luta por mais liberdade, igualdade, justiça, por uma sociedade verdadeiramente socialista. Eis um resumo minúsculo da vida de um valente transmontano, parte da nossa História sem reis nem rainhas, mas que pelo seu exemplo obrigou o prémio Nobel, Pablo Neruda, num dos seus poemas, a questionar: «…Mas,/português da rua,/entre nós,/ninguém nos escuta,/…Sabes, ou alguém o sabe,/como morreu,/o valente Militão?…»
Guidões, 23 de Janeiro de 2010.
Atanagildo Lobo.
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