Edição 580
Literária mente
Há um velho mito entre escritores sobre o tempo que um original deve “repousar”, depois de escrito.
Com o termo “repousar”, há algumas pessoas que defendem que devemos distanciarmo-nos daquilo que escrevemos, para deixarmos de estar viciados no texto, viciados na história, por forma a conseguirmos analisar de forma fria o nosso trabalho e proceder a alterações.
Esta “regra”, por assim dizer, parece quase inviolável pela maioria das pessoas que escrevem. Existem mesmo pessoas que pensam que quem acha que a primeira versão de um texto, de um livro, de um artigo, é uma boa versão, que é irremediavelmente inocente. Porque um trabalho escrito quase que exige, por si só, uma revisão.
Como em tudo na vida, considero o equilíbrio fundamental.
Ao longo do tempo, fui escrevendo, por puro prazer ou a pedido, vários tipos de texto. Desde crónicas, passando por artigos técnicos e até mesmo notícias, culminando no romance. E a questão da revisão, do distanciamento daquilo que escrevemos, sempre foi ambígua para mim.
Por um lado, penso que a análise fria ao que escrevemos pode acrescentar qualidade. Há sempre pormenores que nos escapam quando estamos a lidar com o turbilhão de ideias que nos vão surgindo no ato da escrita – situação que varia de pessoa para pessoa – mas também a própria coerência da história ou do artigo. Quando escrevemos, por exemplo, um livro, um romance, a nossa história tem de fazer sentido. Tem de existir uma linha narrativa forte e coerente, em que as peças encaixam como um puzzle. Esta situação é um atestado de qualidade ao que escrevemos e um atestado de credibilidade a quem escreve, uma vez que quando leem o que escrevemos, estão também, conscientemente ou não, a julgar-nos.
O outro lado, do distanciamento, da análise fria, da revisão é perder-se aquilo que escrevemos de forma tão genuína. Pelo menos na perspetiva em que eu entendo a escrita. Quando escrevo, escrevo o que estou a sentir no momento. Quase que por intuição sei o que precisa a história em cada caso e é isso que coloco. Tenho, assim, medo que a revisão possa retirar pureza ao texto, possa retirar algo de genuíno daquilo que escrevi. E se penso que o objetivo final de qualquer escritor pode e deve ser tocar o coração do leitor, quando escrevemos diretamente do nosso coração para o papel, estamos um passo mais perto de mexer emocionalmente com o leitor.
Assim, é importante haver um equilíbrio muito forte entre o que escrevemos em dado momento e a revisão que fazemos desse trabalho numa altura futura. Para que se acrescente qualidade, sim, mas para que não se retire a essência do escritor ao texto.
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