Crónicas e opinião
Escrita com Norte: O “papelzinho”
“Sendo chefe da Secção de Atribuição de Licenças, Margarida está sempre atenta às conversas dos seus colaboradores com os empreiteiros. Sempre que uma licença está prestes a ser atribuída, ela levanta-se da secretária, aproxima-se e pergunta
– E o papelzinho? Já tem o papelzinho?!”
Margarida, desde há quarenta anos, faz todos os dias úteis o mesmo percurso a pé para o local de trabalho, o Departamento de Licenças das Finanças. Há cinquenta e dois anos que faz o mesmo percurso todos os dias úteis, desde os seis anos, quando foi para a escola primária, que ficava cinquenta metros após o edifício onde viria a ser instalado o Departamento de Licenças das Finanças e faz, desde que se recorda, o mesmo percurso todos os fins-de-semana e dias de feriado até ao parque, que fica situado após a antiga escola primária.
De tanta ida e volta, os sapatos rasos de Margarida estão marcados no passeio e todos respeitam estas marcas como se fossem uma passadeira válida apenas para ela. Fora do trabalho acham-na simpática em virtude do sorriso que mantém no vai e vem casa-trabalho, mas preso ao passado, em que recorda o boato transmitido por uma prima, de que um primo do amigo do primo, irmão da prima, estaria apaixonado por ela e com intenções sérias de casar. O casamento nunca chegou a acontecer, porque eles nunca se chegaram a conhecer! Ainda hoje, Margarida diz-se solteira por opção, apesar de ter vivido um grande amor!
Nesta vida aparentemente marcada pelos hábitos, tudo se desmorona à noite no segredo do quarto da sua casa, desde que a sua mãe faleceu. Debaixo dos cobertores, enquanto dura a reza do terço, Margarida contrai e relaxa os glúteos, mantendo-os em boa forma relativamente ao resto do corpo e permitindo-lhe usar as saias ligeiramente travadas e com folhos abaixo do joelho, estilo atrevido adoptado quando jovem e parolo com o passar dos anos…para a parte de cima, camisa com lenço ao pescoço, coberta sempre por um casaco de malha.
Sendo chefe da Secção de Atribuição de Licenças, Margarida está sempre atenta às conversas dos seus colaboradores com os empreiteiros. Sempre que uma licença está prestes a ser atribuída, ela levanta-se da secretária, aproxima-se e pergunta
– E o papelzinho? Já tem o papelzinho?!
Esta pergunta maldita para os promotores imobiliários, é o “click” para, atarefados, mexerem em toda a papelada que trazem na pasta. Depois de vasculharem impressos, selos e certificados, o papelzinho nunca é encontrado e a licença não é atribuída.
Quase não há construções novas na terra de Margarida desde 1970, e as poucas que foram realizadas foi à custa de licenças atribuídas, em períodos de doença ou de férias desta, pela sua substituta. Sentindo-se desautorizada, quando regressava após a doença ou das férias, quase sempre passadas nas termas, tratava de as embargar.
Naquele dia, quando passa pela obra do Centro Comercial, licenciado durante uma gripe, mas devidamente embargada e com inauguração marcada para dali a duas semanas, cai num buraco e bate com a cabeça num tijolo.
…
Quando recupera os sentidos, levanta-se, olha para si, tem a saia composta mas o casaco está rasgado no braço – Ainda tenho umas cotoveleiras lá em casa! – pensa. Levanta a cabeça, olha à sua volta e – Uuiiii!!! – exclama.
Por todos os lados, o deserto… milhares de homens mal vestidos são chicoteados enquanto puxam pesadas pedras. Olha para a sua direita e abismada Margarida vê uma construção a tomar forma de uma pirâmide e em frente a si um homem aos berros – Deve ser este o empreiteiro! – pensou.
– Ó senhor. – chamou num tom bem audível.
O homem de trajes estranhos e tez muito morena aproxima-se.
– A licença para esta obra? – pergunta.
– Licença?! Eu fui mandado fazer esta pirâmide.
– Por quem? – pergunta Margarida, começando a perder a paciência.
– Pelo meu Amo, o Grande Quéops!
Incomodada, Margarida manda chamar o Faraó e pede-lhe o papelzinho da obra. Perante a inexistência de papelzinho, Margarida embarga a obra e fiscaliza outras em curso: estátuas gigantes com corpo de gato e rosto humano, sete templos e quatro fortificações. Perante a ilegalidade, todas as obras ficaram suspensas.
Actualmente, nas aulas de História fala-se de uma civilização antiga, que antes de atingir o seu apogeu, caiu em desgraça por falta do “papelzinho”!
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