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Escrita com Norte: Irmãos sem contar

“Não entendo porque demorei cinquenta anos a acompanhar o meu pai a um destes encontros, a conhecer pessoalmente as personagens das inúmeras estórias, e repetidamente, contadas por ele, de jovens que cuidaram da vida um dos outros e se fizeram irmãos.”

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A Guerra Colonial Portuguesa foi um conflito que se estendeu de 1961 a 1974, em África, especialmente. Os principais focos de resistência a Portugal foram em Angola, Guiné-Bissau e Moçambique.

Noventa por cento da população jovem masculina do país, apanhada numa curva apertada da história de Portugal, foi arrancada à sua terra e às suas famílias, sendo mobilizados para outro continente, quando, para eles, a distância da sua terra à capital, Lisboa, era longe de mais.

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A Companhia de Caçadores 2418 (auto intitulada de “Tigres do Niassa”), em 1968, quando 1 km a mais de caminho fazia parecer que tudo ficava no fim do mundo, foi para o lado de lá de África, para Moçambique, e quando chegados a Lourenço Marques, foram enviados para o norte, para a selva…estiveram lá quase dois anos, até 1970.

Esta guerra causou cerca de 10 mil mortos e 20 mil inválidos entre os soldados.

15 de junho de 2024.

À mesa, apreciava em meu redor o salão cheio, naquela quinta de eventos nos arredores de Lousada.

Pouco antes estive no átrio de uma igreja, próximo da quinta, onde lá dentro decorria uma cerimónia religiosa. Pelo número de pessoas no exterior durante o serviço religioso, questionava-me se a igreja estaria com “boa clientela”.

Entre aquelas pessoas reconhecia, com orgulho, apenas os meus pais, que em adolescente, por vezes, sentia embaraço pelo afecto que a minha mãe demonstrava por mim em frente aos meus amigos.

Nem os noivos conhecia, porque apesar de a igreja ser adequada a esse tipo de eventos, não foi o casamento de alguém que me pôs ali.

O meu pai “pôs-me” ali, e foi-me apresentando as pessoas com quem nos ia-mos cruzando, todos da sua geração.

À entrada do salão de festas, um cartaz identificava o evento, o quinquagésimo quarto convívio da Companhia de Caçadores 2418, em redor, painéis com fotografias carregavam memórias do passado e próximo de cada uma das mesas um monitor passava imagens antigas de jovens, que eu ia reconhecendo naquela sala, apesar de uma guerra e de cinquenta e quatro anos passados por eles, quando o país os arrancou à sua vida e os enviou para a luta. Foram sós, apesar dos milhares que iam naquele barco, e lá, sem contar, fizeram-se irmãos.

Em cada pausa entre pratos, em cada ida à casa de banho, entre anúncios, …, estes homens de setenta e sete anos, como crianças irrequietas, que não aguentam muito tempo sentadas, levantavam-se e calcorreavam as mesas, ao encontro uns dos outros, ao encontro dos seus “irmãos sem contar”, enquanto nós, os filhos/as, as esposas e alguns netos/as e bisnetos/as, sorriamos uns para os outros, cúmplices, sabendo como cada um daqueles “jovens” regressou…

– Eu sou o Sousa, filho do Sousa, condutor.

– Eu sou o Calheiros, filho do Calheiros, das transmissões, o radiotelegrafista.

Enquanto os “irmãos sem contar” aproveitavam a companhia uns dos outros, nós, os familiares, fomo-nos apresentando, como se fôssemos aquele primo que vive longe que nunca chegaram a conhecer.

Não entendo porque demorei cinquenta anos a acompanhar o meu pai a um destes encontros, a conhecer pessoalmente as personagens das inúmeras estórias, e repetidamente, contadas por ele, de jovens que cuidaram da vida um dos outros e se fizeram irmãos.

– Ó Malagueira, eu sei que não há um único dia em que não penses em mim…

E sem deixar acabar, o Sr Malagueira, interrompe o Sr Pinto, e com as lágrimas nos olhos, diz-lhe:

– Ó Pinto, não há um único dia em que não pense em ti!

Quem vive com estes homens, as esposas e os filhos, sabem que as estórias vividas e as amizades sentidas, passam-lhes na cabeça todos os dias, desde que regressaram em 1970.

Para o ano estarei em Vila Pouca de Aguiar para o quinquagésimo quinto convívio dos “Tigres do Niassa” a acompanhar, com orgulho, os meus pais, que em adolescente, por vezes, sentia embaraço pelo afecto que a minha mãe demonstrava por mim em frente aos meus amigos…mas já conhecendo muitos dos irmãos do meu pai, feitos sem contar, em Moçambique…e espero encontrar o Sousa, filho do Sousa, condutor.

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