Crónicas e opinião
Escrita com Norte: A Tasca
Quim, homem de esquerda, canhoto desde a primeira classe, quase deficiente das forças armadas, quando rasgou a gengiva ao abrir uma cerveja com os dentes, no Quartel de Chaves, é, ainda hoje, dado a frases feitas.
Apesar de nunca ter sofrido as agruras do Ultramar, diz que a sua cicatriz (que não se vê) resultou da explosão de uma granada durante uma missão no meio do mato.
Na altura, na enfermaria, aplicaram-lhe cinco pontos na ferida e desinfetaram-na com álcool, hábito que adoptou desde então, ano de 1969.
Actualmente é dono da “Tasca da Berta”, nome da enfermeira que o tratou, onde se bebe, não para molhar a palavra, mas para sarar as feridas, e tanto se bebe, que naturalmente as cirroses começaram a aparecer!
Quem passa na rua, sempre pelo outro lado, “sacudido” pelo cheiro, que atrai só os que têm vinho nas veias, vê pela porta, que se apresenta como uma moldura de um quadro de outros tempos, um balcão de madeira, por trás várias bancadas com garrafões e o Zé, o empregado, criteriosamente selecionado e que se apresenta todos os dias ao trabalho, não de farda, mas sempre com 2 gramas de álcool por litro de sangue. À frente do balcão, sempre uma meia dúzia de bêbados para atender e aturar e no chão um grande tapetão com um bordado a dizer “O povo é quem mais bebe”, tapado há décadas pelo vomitado da clientela.
Todos os anos, para dinamizar a tasca, o Quim promove um concurso com um prémio de três cálices de tinto, maduro ou verde, para quem adivinhar o dizer do tapetão, e no tecto, a única mensagem legível num pano colocado há seis anos, que diz, “Assim, se vê, a força do Tinto”, para dinamizar a tasca com um concurso mensal, visto que ele se esquece, amiúde, do concurso anual, em que a clientela tenta vomitar o pano…ainda não há vencedores, nem para um nem para outro concurso e o único dinamismo visivel é o decréscimo de clientes, conforme vão sendo internados, ou numa cama de hospital, quando a bebedeira é moderada, ou no cemitério, quando a bebedeira é de caixão à cova.
Lá dentro, mesmo no Verão, quando os dias são longos, o ambiente escurece à medida que se bebe, parecendo por vezes meia-noite quando é meio-dia, e hoje, quando faltavam vinte minutos para as doze horas, o Ramos atravessou a porta da tasca para outra dimensão e veio para o passeio.
- Que puta de gaja boa! – exclamou, com o máximo de cuidado que o maduro permite.
No outro lado da rua passava uma mulher anafada, de banhas expostas pelo top que vestia e coxão quase a rebentar-lhe as costuras. Ela, indiferente ao comentário, sorri por dentro pelo elogio recebido! - Ui, será que é mesmo boa?! – pergunta o Ramos a si mesmo! – Ó pessoal, vinde cá fora. – diz, chamando pelos outros companheiros de copos. E aparece o Quim.
- Ó Quim, aquela gaja é boa? – pergunta.
- Que gaja? Não sei! – responde – Ó Zé, anda cá.
Sendo o menos bêbedo, porque se encontra no local de trabalho, sempre que há questões duvidosas, o Zé é chamado para esclarecer. - O Ramos está a ver uma gaja boa! Eu não estou a ver gaja nenhuma! E tu? – pergunta o Quim.
- Eu estou a ver o sapateiro! – responde ao ver a gorda, agora em sentido contrário, de bolo de aniversário na mão.
-Ahhhhh! – exclamam os outros dois.
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