Edição 762
Conhecer um autista não é conhecer todos os autistas
Com esta reportagem, não ficará, definitivamente, a conhecer grande parte do que é Afonso, mas pelo menos ficará a saber que adora dinossauros e passear de carro. É uma criança. Como todas as outras. Só vê o mundo de forma especial.
O Dia da Consciencialização do Autismo assinala-se a 2 de abril, para esclarecer a população mundial sobre esta condição que se caracteriza por um distúrbio neurológico caracterizado pelo comprometimento da interação social, comunicação verbal e não-verbal e comportamento restritivo e repetitivo. Dividido por graus, este transtorno não define a pessoa que, apesar de necessitar de mais acompanhamento, pode alcançar grandes conquistas. Para assinalar a efeméride, o NT conversou com a mãe do Afonso, de cinco anos, diagnosticado com nível moderado de autismo.
“Hoje foi um dia em grande. O Afonso conseguiu finalmente pedalar sozinho, por muito tempo”. As palavras de Carmen Torres podiam ser de qualquer outra mãe que celebra as pequenas conquistas de um filho, porque o crescimento de uma criança faz-se de pequenos gestos, movimentos, sílabas e palavras. Mas por ser da Carmen, esta comemoração sobe de dimensão já que corporiza mais uma grande conquista do pequeno Afonso.
Diagnosticado com espectro do autismo, este menino é a prova de que este limita, mas não impossibilita, abranda, mas não trava a vontade de crescer. E a vontade do Afonso é grandiosa, não fosse este pequeno episódio da bicicleta demonstrativo da capacidade que pessoas com esta condição têm de se superarem a cada dia que passa.
Depois de uma gravidez normal, Carmen viveu um parto atribulado, que durou cerca de 48 horas e resultou numa infeção que obrigou Afonso a um internamento de dez dias e a acompanhamento médico durante cerca de um ano. No entanto, segundo Carmen, nenhum médico que consultou, inclusive o afamado especialista Nuno Lobo Antunes, “associa” a condição da criança com as complicações que viveu à nascença.
Os indícios de que “algo não estava bem” foram-se avolumando à medida que os meses passaram. Com um ano, Afonso não gatinhava nem andava e deixou de palrar, aptidão que tinha demonstrado cerca dos oito meses. “Parecia que alguma coisa no cérebro dele tinha desligado”, recorda a mãe.
Depois de várias abordagens “junto do pediatra”, que “considerava que se tratava de um atraso normal no crescimento”, Carmen decidiu agir. “Já tinha começado a pesquisar e quando chegamos ao diagnóstico médico eu já o tinha percebido, por encaixar determinadas características da personalidade do Afonso com o autismo”.
Associado a esta condição, o menino tem “um atraso no desenvolvimento”, que, aos cinco anos, o faz ter “uma idade neurológica de dois a três anos”.
Apesar disso, o Afonso tem, nos últimos tempos, revelado uma grande evolução, como aprender a andar de bicicleta. Frequenta o ensino pré-escolar no concelho e também aí quebrou muitas barreiras, já que o relacionamento com crianças era, antes, muito difícil, assim como lidar com o barulho, tão característico do ambiente escolar.
Quando Carmen pensou em desistir para não o fazer sofrer mais, Afonso foi revelando melhorias e hoje está perfeitamente integrado. Só ainda não consegue ter uma relação sã com o primo, com quem divide o lar.
Esta condição obriga Afonso a um acompanhamento especial, uma vez que o desenvolvimento cognitivo é muito mais lento que numa criança sem autismo. As terapias são essenciais para que haja progressão contínua e, por isso, durante a pandemia, o grande desafio esteve nas mãos de Carmen, que teve de assumir “o leme”. E a dedicação traduziu-se na elaboração de um sem número de ferramentas “caseiras” que ajudassem Afonso, como os que treinam a sensibilidade e a perceção.
Botões de camisa, arroz pintado de várias cores, tubos feitos de palhinhas, latas… nada faltou na sala de terapia caseira de Afonso, imprescindível para que não se verificasse um reverso na evolução.
Com o preconceito, Carmen Torres aprendeu a lidar, diariamente, uma vez que “há muita gente que pensa que os autistas são aquelas crianças irrequietas e cheias de crises que não conseguem estar em sociedade”. Há momentos difíceis, sim, mas estes não definem Afonso, que “adora cumprimentar e abraçar pessoas, sem ser chato”.
Medo maior é o futuro, confessou a progenitora. “Custa-me muito pensar como será quando ele perceber o preconceito que existe nalgumas pessoas, que se afastam e mostram desdém”.
E é exatamente este pensamento que a faz acordar todos os dias com vontade de dotar Afonso de todos os mecanismos de autonomia, capazes de o defender mais tarde.
Numa tentativa de partilhar experiências e também ajudar-se neste processo duro, Carmen Torres decidiu criar uma página de Facebook, denominada “A de Autismo”, através da qual dá o testemunho dos obstáculos, mas, essencialmente, das conquistas de Afonso. Porque o não se pinta de preto e branco, os dias são pintados de várias cores e determinados por momentos bons e menos bons. É necessário gritar à sociedade que quando conhece um autista, não conhece todos os autistas e que as crianças com esta condição, tal como as outras, não são todas iguais e precisam apenas do acompanhamento correto para ganharem competências e singrarem na vida.
Com esta reportagem, não ficará, definitivamente, a conhecer grande parte do que é Afonso, mas pelo menos ficará a saber que adora dinossauros e passear de carro. É uma criança. Como todas as outras. Só vê o mundo de forma especial.
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