Crónicas e opinião
A lição inglesa
Com o mundo ocidental a virar-se para uma direita pouco dada à moderação, o Reino Unido caminha em contraciclo para as eleições gerais de 4 de Julho.
Durante 12 anos, o Partido Conservador esteve no poder e apresentou-se sob diferentes capas. Do conservadorismo mais convencional de David Cameron ao populismo radical de Boris Johnson, passando pelo fugaz ultraliberalismo de Liz Truss, os tories encontram-se hoje em posição para sofrer a pior derrota da sua história, com sondagens a projectar mais de 500 deputados eleitos pelos trabalhistas, em 650 possíveis.
No palco do Brexit, a primeira grande vitória do novo populismo, a regra do “espírito do tempo” parece não se aplicar. Ao contrário do que acontece na Alemanha ou França, é o centro-esquerda e a social-democracia que crescem. Se as sondagens se confirmarem, será uma pesada derrota não apenas para a agenda da extrema-direita, mas também para o conservadorismo e para o neoliberalismo que, vezes demais, se dão a flirts com a direita autoritária.
Porque é que isto acontece no Reino Unido, país tradicionalmente governado à direita?
Julgo que existem 3 factores que, entre outros, se destacam.
O primeiro diz respeito à agenda do Labour. Ao contrário do que vem sendo habitual à esquerda, vezes demais refém de uma agenda que prioriza temas fracturantes e guerras culturais, os trabalhistas recentraram o discurso em torno do reforço dos serviços públicos e do Estado Social, do aumento do salário mínimo e da necessidade de maior justiça fiscal. E isto reaproximou o partido não apenas do eleitorado de esquerda, mas, sobretudo, do centro, cujo voto oscila mediante as circunstâncias, os líderes e as políticas.
O segundo tem a ver incapacidade da direita tradicional em resistir ao avanço da extrema-direita. Quando cede, como aconteceu no Partido Republicano com Trump, os extremistas ocupam o espaço dos moderados, que deixam de ter voz. E o resultado são políticas em conflito com os valores comuns das democracias ocidentais, como a separação de poderes, o Estado de Direito, os direitos humanos ou a laicidade do Estado. E o eleitorado ao centro, pouco dado ao autoritarismo, tende a virar-se para o centro-esquerda.
O terceiro e último factor diz respeito a um tema com o qual a esquerda – com excepção da primeira-ministra dinamarquesa, Mette Frederikson – não está a saber lidar: imigração. O problema da imigração não reside na vinda de imigrantes para países europeus, até porque a larga maioria destes países, como o nosso, precisa deles. Mas a esquerda não pode continuar refém de dogmas. Precisa de assumir uma posição sobre como lidar com o problema da imigração ilegal, das redes de tráfico de seres humanos e da integração de residentes estrangeiros. Sob pena de permitir que as notícias falsas e a manipulação grosseira que a extrema-direita faz da opinião pública triunfe.
Keir Stramer, líder dos Trabalhistas e provável próximo primeiro-ministro inglês, recentrou o discurso nas prioridades da maioria das pessoas: o reforço do SNS, a aposta na escola pública, mais e melhores transportes públicos e uma política energética ditada pelo Estado e não pelo interesse do sector privado. E não teve medo de ignorar os devaneios do wokismo ou de falar em imigração. O resultado está à vista.
Seria importante que a esquerda democrática olhasse, analisasse e reflectisse sobre o caso inglês. Talvez esteja ali a solução para derrotar a extrema-direita e a selvajaria neoliberal. E não foi preciso inventar a roda. Bastou recuar no tempo e trazer de volta as grandes propostas que fizeram da Europa aquilo que ela ainda é. Uma Europa de todos e para todos, com serviços públicos de qualidade, que respeita os direitos humanos e está devidamente blindada para evitar o regresso dos extremistas sedentos de guerra.
A lição inglesa é esta: nem o extremismo de direita é uma inevitabilidade, nem o povo se fartou do modelo social europeu. Aliás, crescimento do extremismo resulta mais das desigualdades geradas pelo modelo económico, cada vez mais concentrado nas mãos de uma pequena elite sem escrúpulos, do que de questões fracturantes do momento, como a imigração ou a identidade de género. Porque, no final do dia, a maioria quer “a paz, o pão, habitação, saúde, educação”.
Quer liberdade.
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