Crónicas e opinião
Escrita com Norte: Possessão
“Disfarcei a minha aflição… a minha mulher estava possuída, tinha que fazer algo!”
Mais por observação dos outros do que propriamente por educação ou formação, nunca acreditei no mundo metafísico, ficando sempre um pouco admirado quando ouço – “Foi porque Deus quis!”
Esta expressão, se utilizada como desbloqueadora para pôr fim a uma conversa sobre a queda de skate do Caló, é aceitável, mas como explicação da distracção do jovem skater, como se não estivéssemos sós no mundo, isso é estúpido, pensava eu… até um dia destes!
A Cristina, depois de chegar a casa com mais um par de sapatos, a minha expressão foi a mais natural do mundo:
– Outros?! – exclamei, e de seguida aplico outra exclamação para evitar uma discussão – São muito bonitos!
Esclareceu-me que, tal como o Ministro das Finanças, também tem uma folha de cálculo Excel e perspectiva utilizá-los brevemente numa situação ainda indefinida!
Esta visão que a Cristina tem enquanto mulher, a mim, homem, escapa-me, e ao longo dos anos sempre assumi isto como normal… até há poucos dias.
Fim de tarde, Rua Conde S. Bento, Trofa, minha terra. Esta é a rua comercial por excelência, com só metade das lojas fechadas, sobrando algumas de decoração, que são as favoritas dela (e minhas).
Na primeira montra avistamos uma peça sobre a qual ela comenta:
– Que bonita, ficava mesmo bem na nossa sala!
Com este comentário, não digo nada, faço um biquinho, como quem quer assobiar e fico ligeiramente tenso e preso de movimentos e penso para mim – “Ui, ainda só estamos no início da rua”.
Ainda havia muita montra para ver, quando, com espanto, ouço da boca dela:
– Mas já temos em casa 34 peças iguais ou parecidas com esta. Não vou comprar!
Percorremos o resto da rua sem que ela fizesse alguma compra, como que tendo desistido da Folha de Cálculo!
À noite, já a Cristina dormia, e eu perturbado com aquele final de tarde, fazia zapping e parei no AXN, onde estava a dar o filme “O exorcista”. No fim, desligo a televisão e, enquanto olho para ela, sou assombrado pelo pensamento – “Será que estás sob posse demoníaca?!”
Para mim foi um novo início, comecei a perceber que existem forças que escapam à nossa capacidade de entendimento!
Despertamos cedo e pergunto:
– Vamos fazer compras desnecessárias, mas bonitas?
A Cristina fita-me, pensava eu que a apreciar a minha beleza, e responde:
– Estás tolo! Não te custa a ganhar o dinheiro?!
Disfarcei a minha aflição… a minha mulher estava possuída, tinha que fazer algo!
À noite, no regresso a casa, ela adormece no carro. Era agora ou nunca, tinha que fazer um exorcismo. Rapidamente tomei a direcção do IKEA.
Lá chegados, e pela primeira vez contra vontade, a Cristina passeava-se nos corredores e eu iniciei o exorcismo, utilizando “água-benta comercial”.
– Morzinho olha que sofá lindo, …, olha que tapetes belos, vamos comprar, vamos,…, vê-me só a categoria deste quebra-nozes!
Eu dava tudo neste exorcismo, mas o espírito dentro dela mantinha-se frio e calculista, mas não podia desistir, tinha que recuperar a minha mulher!
– VAI-TE ESPÍRITO MALDITO! – grito, enquanto “esfrego” umas toalhas de mesa na cara da Cristina.
O desespero era total, quando à saída ela repara:
– Que cadeiras bonitas!
Apesar de já termos 12 daquelas cadeiras, os meus olhos brilharam e as lágrimas já me escorriam pelo rosto, pensando que a tinha recuperado, quando, contra o que era de esperar, ela continua:
– Mas não precisamos!
Tomado pelo desespero, pergunto:
– Quem és tu Espírito mau? Abandona esse corpo e vai para o teu mundo!
A expressão na cara da Cristina altera-se, como quando faço migalhas em casa, e com uma voz grossa denuncia-se:
– Eu sou o Salazar!
Saio do IKEA, derrotado, com a minha esposa possuída por um Demónio fortíssimo anti-despesa. Mas eu desconhecia o poder de um Centro Comercial mesmo para um Demónio forreta.
Ao dirigirmo-nos para o parque de estacionamento, ao passar pela última loja de decoração:
– Espera! Que coisas lindas! – diz ela.
Entrou e comprou meia dúzia de peças, 3 delas desnecessárias. O exorcismo tinha dado resultado. Dei-lhe um abraço forte, tinha recuperado a minha senhora e, já no carro, pede-me:
– Vamos ao IKEA, outra vez?
Feliz, sorri.
– Amanhã, vimos de manhã, à tarde e à noite! – prometi-lhe.
– Boa! – responde-me com um abraço, como se não me visse há muito tempo.
Os espanhóis bem dizem, “Yo no creo en brujas, pero que las hay, las hay!”
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