Crónicas e opinião
Quando a casa é o lugar mais perigoso do mundo
Desde o início do século XXI que é assinalado, em abril, o Mês Internacional da Prevenção dos Maus-Tratos na Infância, representado simbolicamente por um laço azul, originando o “Movimento do Laço Azul”.
Este Movimento surgiu em 1989, no Estado da Virgínia, nos EUA, e relata a história de uma avó, Bonnie W. Finney, que tomou a iniciativa de colocar uma fita azul na antena do seu carro, de forma a despertar a curiosidade das outras pessoas e a demonstrar a sua dor face aos acontecimentos trágicos de que tinham sido vítimas os seus netos, às mãos da sua filha e do seu genro. Um dos seus netos terá morrido inclusive em consequência das agressões de que foi alvo. Imbuída de simbologia, Bonnie escolheu, então, a cor azul para os laços, por esta cor melhor representar as equimoses espalhadas pelos pequenos e delicados corpos dos seus netos em virtude dos maus-tratos que sofriam.
Rapidamente, o Movimento adquiriu relevância mundial, sendo assinalado em abril, em vários países. Portugal não é exceção.
E é abril. Um abril excecional, que chegou com as primeiras chuvas de uma tempestade chamada covid-19, o mês da Liberdade, em que testamos os nossos direitos, garantias, e liberdades, em que nos debatemos com o lusco-fusco de um medo coletivo, de um policiamento, muitas vezes, fútil e vazio e amanhecemos numa alvorada de solidariedade e de esperança. Porém, em virtude das medidas de confinamento, muitas crianças amanhecem no crepúsculo, acompanhadas por familiares que negligenciam, maltratam, abusam, e veem a sua dignidade e os seus direitos a serem ignorados, roubados, violados, pelos mesmos do policiamento fútil e vazio, que não reconhecem, não identificam e não sinalizam.
A violência não principia com o confinamento, contudo, a literatura científica indica-nos que os períodos de isolamento social parecem associar-se a maiores taxas de violência doméstica e de maus-tratos infantis, assim como a dificuldades acrescidas no acesso a mecanismos de auxílio e socorro às vítimas. A coexistência, muitas vezes, confinada a espaços diminutos, pode ser um fator de tensão; sabemos que, em muitas situações, há quadros de consumos de substâncias psicoativas, sobretudo quadros de alcoolismo muito preocupantes que se escondem por detrás de perturbações psiquiátricas graves, de personalidade antissocial, de maus-tratos a animais, de situações de violência doméstica, de negligência, exploração, agressão ou abuso de crianças. Sabemos que, também, todas estas situações são transversais a todas as classes sociais e que o stress, a ansiedade, a raiva associada ao reduzido autocontrolo experienciado por algumas pessoas, entre outras situações, podem destabilizar situações familiares já frágeis e colocar as crianças em maior risco ou perigo.
Estas crianças, vítimas, poderão responder de forma desadaptativa a experiências de stress adicional, potenciado pelo maior isolamento, e evidenciar comportamentos disfuncionais, como os que se relacionam com quadros depressivos e de ansiedade, tentativas de fuga das suas casas, ideação suicida. E isto porque a violação dos seus direitos, devido ao confinamento e ao maior isolamento, pode ficar por identificar e sinalizar (sugiro, a este propósito, a leitura da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, ONU, 1989, ratificada por Portugal em 21 de setembro de 1990).
O conceito de maus-tratos a crianças é dinâmico: o que hoje é considerado maus-tratos foi, em tempos, praticado como medida educativa (e.g. punições físicas), evoluindo com as novas realidades sociais e culturais e com o melhor conhecimento das características específicas das crianças e o reconhecimento dos seus direitos. Os maus-tratos a crianças (negligência, mau-trato físico, psicológico, emocional, abuso sexual, exposição a comportamentos desviantes, exploração) dizem respeito a um importante problema de saúde pública, reconhecido, atualmente, em todo o mundo; condiciona taxas de morbilidade e mortalidade infantil, é gerador de desadaptações que conduzem à delinquência juvenil, ao aumento das taxas de criminalidade, a problemas de saúde mental. Em muitas situações, passa de geração em geração e, sem identificação, não há referenciação nem intervenção, propagando-se como um vírus.
Com as restrições que estão em vigor, como as escolas fechadas; as equipas das CPCJ limitadas, com muitos dos seus elementos em teletrabalho, a restringirem as visitas ao domicílio das crianças em risco para os casos “estritamente necessários e urgentes”; as equipas dos Centros de Apoio Familiar e Aconselhamento Parental (CAFAP) e as Equipas Multidisciplinares de Assessoria aos Tribunais a assegurarem os “atos presenciais estritamente essenciais para salvaguardar a proteção das crianças e jovens, com especial atenção às situações urgentes que careçam de intervenção imediata”, é urgente que nós, a comunidade, façamos a nossa parte, que cumpramos o nosso papel e que estejamos vigilantes, divulgando formas de autoproteção e meios de apoio e que sinalizemos as situações suspeitas às entidades competentes em matéria de infância e juventude.
As entidades competentes têm disponibilizado contactos para o efeito, tais como: SOS-Criança 116 111 e 913069404 (WhatsApp); Linha SNS24 808 24 24 24; APAV 116006; e através de e-mail para cnpdpcj.presidencia@cnpdpcj.pt.
Ora, lembremos que o risco existe sempre, não sendo necessária a atual experiência excecional de pandemia; muitas vezes, a sociedade não está suficientemente atenta, sensibilizada ou envolvida. Contudo, neste momento, mais do que nunca, é inequívoco que todos/as os/as cidadãos/ãs devem contribuir para a prevenção e sinalização de maus-tratos na infância, acautelando o superior interesse das crianças e jovens!
Para algumas crianças, a casa é o lugar mais perigoso do mundo.
Sónia Garcia da Costa
Psicóloga
Membro Efetivo da Ordem dos Psicólogos Portugueses
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