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Os números da destruição do nosso sentido de humanidade

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Os números têm o grande perigo do hábito. Habituamo-nos, em muito pouco tempo, a que o número de pessoas forçadas no mundo a abandonar as suas casas devido a guerras, conflitos, violência, perseguições, violação dos direitos humanos ou desastres naturais aumente todos os anos. Em 2018, ultrapassou os 70 milhões. Só no ano passado, 37 mil pessoas por dia ou 25 pessoas por minuto tiveram que deixar as suas casas sem qualquer certeza de regresso.

Os números também têm o grande perigo do medo. Não temos muito medo que nos toque a nós: facilmente nos distanciamos com a ideia de que isto só acontece “naqueles” países. Temos medo de sermos muito poucos no meio de tantos e que isso possa significar uma espécie de invasão. Certo é que os dados são muito claros a contrariar este sentimento de medo da migração como mancha: 97% da população mundial não migra. É interessante verificar que somos mais resistentes ao acolhimento de migrantes, quanto menos população estrangeira temos. Superando estes perigos dos números, podemos começar a trocá-los por pessoas concretas. Muitas delas próximas, até.

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Entre os demasiados exemplos, olhemos para o campo de refugiados de Moria, na ilha grega de Lesbos. Estão quase 19 mil pessoas há demasiado tempo num lugar com condições para alojar temporariamente 3 mil. Alguns dos processos têm a primeira entrevista marcada para 2023, o que significa que não podem abandonar o campo até lá. A Médicos Sem Fronteiras (MSF), com trabalho nos contextos mais difíceis dos nossos tempos, considera o pior campo de refugiados do mundo. E está aqui ao lado, na nossa Europa.

Trocar por pessoas concretas significa apontar com muita clareza a culpa das 5 pessoas que morreram nos últimos 2 meses, incluindo duas crianças e um bebé. Significa assumir a responsabilidade das crianças com 2 anos que se mutilam e das que dizem às unidades de apoio psicológico que preferiam morrer a viver ali. Significa assumir a responsabilidade das crianças que já tentaram o suicídio, das crianças que se isolam, que não querem brincar ou falar e das que arrancam cabelos ou batem com a cabeça nos contentores.

Chegamos até este ponto ultrapassando vários momentos em que escolhemos ignorar o que se estava a passar. Não foi falta de informação. Foi uma escolha. Quando duvidamos que alguém em alto mar deve ser salvo de afogar-se, estamos a escolher o tipo de humanidade que somos: a humanidade que banalizou e relativizou a miséria, o sofrimento e as mortes. Somos uma humanidade numa espiral de medo que nos conduz ao ódio profundo de tudo o que está mais ou menos próximo.

Tendemos a relativizar realidades que questionam a nossa humanidade. Como estas realidades são de urgente resposta e de implicação directa com o nosso sentido de justiça, compaixão ou solidariedade, tendemos a relativizar para nos distanciarmos e nos protegermos. Para podermos falar sobre os tempos que vivemos, vamos começar por colocar nomes às coisas. É muito importante tratarmos os fenómenos pelos nomes. A partir do momento em que lhe damos um nome, podemos identificá-los, tomar posições e preveni-los. Facilmente, caímos na trapaça de acharmos que é xenofobia, o medo de estrangeiros. Não é. Nós não temos medo de estrangeiros. É globalmente aceite a narrativa do turismo enquanto algo benéfico. Aliás, em Portugal até nos gabamos pela nossa arte de acolher os estrangeiros. Temos medo das pessoas em movimento, ou vulgarmente chamados de refugiados, não porque são estrangeiros, mas porque os vemos enquanto miseráveis e pobres. O nosso problema chama-se aporofobia: “aporos” (pobre) com “fobia” (medo) em grego. Aporofobia, o medo dos pobres.

Quando falamos de uma “crise de refugiados” temos de falar muito mais de uma “crise da nossa humanidade”. É aqui que tudo se torna muito mais perigoso. Não é difícil habituarmo-nos a que esta nossa humanidade seja preenchida por medo. O medo só tem um caminho: o ódio pelo outro, o ódio pelo próximo e o ódio pelos nossos. Ainda vamos a tempo de minimizar o impacto destrutivo desta questão no que somos enquanto sociedade. É urgente olharmos para cada uma das pessoas em condições miseráveis e restabelecermos a dignidade humana como valor sagrado.

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