Edição 663
A afirmação da mulher é uma luta que (ainda) se justifica: O poder da superação no feminino
“Claro que as mulheres ganham menos que os homens. Elas são mais fracas, mais pequenas e menos inteligentes”. As palavras do eurodeputado polaco Janusz Korwin-Mikke, em pleno século XXI, mostram que a luta pela igualdade de género é mais atual do que aquilo que possamos pensar e mais universal do que o que parece.
Podemos viajar até 1857 para encontrar o início de uma luta, que se prolongou ao século XX, por melhores condições de trabalho, salários baixos, excessivas horas de trabalho ou o direito ao voto. Em 1975, a Organização das Nações Unidas decretou oficialmente o dia 8 de março como o Dia Internacional da Mulher.
Algumas das mulheres contemporâneas vestem a pele de várias mulheres e usam uma capa quase que de super-heroínas que lhes permite realizar várias tarefas diárias e quase em simultâneo. De forma a homenagear as mulheres em geral, fomos à procura de alguns exemplos que marcam a diferença a nível pessoal e profissional e que nos mostram que esta é uma luta que valeu e continua a valer a pena, todos os dias do ano.
O poder da superação no feminino
“Pedras no caminho? Guardo todas, um dia vou construir um castelo”. A citação de Pessoa encaixa-se que nem uma luva em Vera Araújo. Às dificuldades que viveu há poucos anos enquanto exerceu funções na autarquia da Trofa, a trofense respondeu com mais uma etapa profissional de sucesso. Hoje, é responsável pela divisão de desenvolvimento económico da Câmara Municipal de Santo Tirso, com a dinamização da Fábrica de Santo Thyrso, da sua incubadora de Moda e Centro de Empresas e Inovação.
Antes de aceitar este desafio – e após convites das câmaras de Gondomar e Valongo – Vera Araújo confessa que viveu “um verdadeiro pesadelo” durante o período que coincidiu com a entrada do executivo municipal da Trofa, em 2013. “Rapidamente me tentaram colocar numa qualquer prateleira de arquivo, num terceiro andar de um lindo edifício, num espaço destinado a arrumar coisas antigas, bafientas e carregadas de poeiras e ácaros”, contou. As “sequelas irreversíveis” na saúde que este “período cinzento” lhe deixou só lhe deram força para “mudar de rumo”. “Desistir não faz parte da minha forma de ser”, asseverou. Hoje, quase dois anos depois, sente “orgulho” no trabalho que desenvolve em Santo Tirso, na busca de novos investimentos para aquele concelho.
Mas a pegada social que Vera Araújo já deixou na Trofa e arredores é muito mais significativa. O sonho de ser jornalista levou-a a licenciar-se na área e a abraçar projetos no Jornal da Trofa e Rádio Trofa – onde conheceu o marido – e noutros órgãos de comunicação, mas foi com o projeto que abraçou com a irmã, Magda, que ganhou notoriedade no concelho. O Notícias da Trofa nasceu em 2002 e mudou a sua vida para sempre. Neste periódico trabalhou até 2009, ano em que aceitou ingressar na Câmara da Trofa.
Foi como jornalista que Vera Araújo sentiu que ser mulher podia ser um obstáculo. “No acompanhamento do futebol”, contou, era olhada “como se fosse uma criatura estranha num habitat de homens”. E se queria “ter um furo” – como se diz na gíria jornalística – “tinha de suar bem mais a camisola”.
A “Liana”, alcunha que ganhou em criança pela família, é mulher dos sete ofícios, por isso no currículo colecionou experiência como coordenadora pedagógica de Cursos de Formação para adultos, tendo também uma ligação especial às áreas de cidadania, ambiente e floresta, tendo-se aventurado pela licenciatura em Geografia e Planeamento, que por falta de tempo acabou por abandonar ao fim de três anos. Socialmente, esteve ligada a grupos paroquiais, a associações culturais e desportivas, exerceu funções na Assembleia de Freguesia de Bougado – onde defendeu acerrimamente a desagregação das freguesias de Santiago e S. Martinho – e até tem o título de “primeira mulher rotária na Trofa”.
Esta dedicação à vida profissional traz consequências na gestão da vida familiar e Vera admite que “desde sempre” colocou o trabalho “como prioridade”. “Tenho este grande defeito do perfecionismo e na superação de metas, que às vezes acaba por ser exagerado. Mas, como costumo dizer com frequência, após tanta dedicação a cada causa que abraço, um dia ainda vou receber uma medalha de cortiça…”, concluiu.
Entrevista Completa
O Notícias da Trofa: Nota biográfica
Sou conhecida por quase todos como Vera Araújo mas, em família e quando era mais pequena todos me tratavam por Liana (diminutivo de Liliana) e mais tarde já no secundário a minha amiga Ilda Moreira resolveu dar-me uma nova alcunha: chefe. Cresci até aos 5 anos de idade sendo filha única, queria ter irmãos e tinha um sonho que me acompanhou durante toda a infância, adolescência e juventude: ser jornalista. Apesar dos conselhos em contrário, fazendo jus à minha enorme teimosia, mantive-me irredutível e além das entrevistas que fazia diariamente às minhas bonecas, já nessa altura de microfone em punho chateava tudo e todos com este meu sonho.
Já enquanto aluna da Escola Secundária da Trofa, ingressei pela mão do falecido professor de História, Faria Gonçalves, e da professora de Filosofia, Ercília, no recém-criado projeto da rádio escola, onde estive até ao final do Secundário, nos últimos anos como aluna responsável pelo projeto. Ainda na escola Secundária da Trofa e com a professora Luísa fiz parte do projeto de jornal intitulado Letras ao Acaso, juntamente com os meus colegas de turma. Mas o meu gosto pela liderança e o desafio por estar envolvida em projetos continuou a crescer. Ingressei na Universidade, e durante a licenciatura “alistei-me” na extinta Rádio Trofa onde, por carolice fazia um programa semanal. E o mais curioso é que foi mesmo lá que conheci o meu marido que me ensinou muito do que aprendi em rádio.
Pouco depois estava já a trabalhar em part-time na Rádio e no Jornal da Trofa onde permaneci até 2002. Paralelamente terminava também em 2002 a minha licenciatura de cinco anos em Comunicação Social na Universidade do Minho, iniciava a minha experiência e cumpria um sonho de ser jornalista em televisão. Foi uma ótima experiência a que vivi na TVI no Porto tendo como orientadores o Júlio Magalhães e a Sandra Inês Cruz. Em outubro de 2002 fui contratada para trabalhar como jornalista no Jornal Têxtil, onde estive até 2003, mas ainda em 2002 senti que precisava de um projeto jornalístico mesmo meu e, juntamente com a Magda Araújo, lançamos o jornal O Notícias da Trofa, um periódico que era publicado de 15 em 15 dias. Muitas peripécias depois e já em 2003 fui convidada a ingressar no jornal O Primeiro de Janeiro, onde trabalhei durante alguns meses.
Decidi que deveria dedicar mais tempo a este projeto e a outra área que sempre me fascinou: a formação. Durante alguns anos trabalhei na formação de adultos, como coordenadora pedagogia de Cursos de Formação para adultos e cursos EFA na ADAPTA. Fui sempre mantendo atividades ligadas à formação nas áreas de cidadania, comunicação, área ligada ao ambiente e à floresta e frequentei até ao terceiro ano a licenciatura em Geografia e Planeamento na Universidade do Minho, mas por falta de tempo acabei ainda não consegui terminar.
Em 2007, fui convidada a integrar como avaliadora em vários Centros de Novas oportunidades desde Fafe, passando por Guimarães, Vila Nova de Famalicão, Maia e Trofa. Esta foi para mim uma fase de grande aprendizagem com os adultos que com riquíssimas histórias e experiência de vida buscavam a sua certificação de competências, mas que, todos os dias nos ensinavam imenso.
Em finais de 2009, e já depois das eleições autárquicas, fui convidada pela então presidente de Câmara Municipal da Trofa, Dr.ª Joana Lima, a integrar a sua equipa de trabalho na autarquia nas áreas da comunicação, desenvolvimento económico e na gestão de financiamentos comunitários. Confesso que hesitei muito em aceitar o convite, pois jornalismo tinha sido sempre o meu sonho, mas após cerca de depois meses de indecisão decidi aceitar o desafio.
Assim, em janeiro de 2010 iniciei uma nova etapa na minha vida profissional que alteraria o meu rumo em termos profissionais, afastando-me temporariamente do jornalismo. Trabalhei até 2013 como relações públicas e assessora de imprensa, acumulando as funções de chefe de Serviço de Gestão de Fundos Comunitários e Desenvolvimento Económico.
Mas a fase mais difícil da minha vida profissional estava a chegar com a entrada de um novo executivo na Câmara Municipal da Trofa que, rapidamente me tentou colocar numa qualquer prateleira de arquivo, num terceiro andar de um lindo edifício, num espaço destinado a arrumar coisas antigas, bafientas e carregadas de poeiras e ácaros. Começava aqui um período difícil em termos profissionais e de saúde que, graças ao apoio de familiares, amigos colegas de trabalho e médicos fui superando, apesar das sequelas irreversíveis que este período cinzento me deixou e que me acompanharão até ao final da minha vida. Mas quem me conhece sabe que nunca desisto. Posso mudar de rumo, posso inverter a marcha para atingir o meu objetivo, mas desistir não faz parte da minha forma de ser pois sou teimosa demais para atirar a toalha ao chão.
Depois de muita luta e perseverança, e após ter sido desafiada a integrar as equipas das Câmaras Municipais de Gondomar e mais tarde de Valongo, acabo por aceitar o convite que me foi endereçado pelo Dr. Joaquim Couto, para me transferir para a autarquia de Santo Tirso e agarrar um novo projeto: a dinamização da Fábrica de Santo Thyrso, da sua incubadora de Moda e Centro de Inovação e o Gabinete de Dinamização Económica, o Invest Santo Tirso. Faz precisamente a 1 de abril dois anos que agarrei a oportunidade deste novo projeto profissional que muito me enche de orgulho e satisfação com o apoio de um grupo fantástico que comigo trabalha diariamente para atrair novos investimentos para o concelho de Santo Tirso e para apoiar os projetos já instalados no concelho a crescer.
NT: Alguma vez se sentiu prejudicada no exercício das suas funções por ser mulher?
VA: Durante a minha experiência como jornalista, e no que diz respeito ao acompanhamento de futebol, onde a quase totalidade de jornalistas eram homens na altura, nós mulheres, as poucas que por lá andavam, sentiam um pouco de desconforto pois éramos olhadas como se fôssemos criaturas estranhas num habitat de homens. Não posso dizer que me senti prejudicada, pois as dificuldades para mim nunca foram problema, mas tinha de lutar mais para conseguir o mesmo. Se queria ter “um furo”, uma noticia em primeira mão, tinha de suar bem mais a camisola. Por exemplo, no acompanhamento das equipas em jogos fora muitas vezes me diziam: “se não fosse mulher até podia ir connosco no autocarro”…
NT: Foi difícil chegar onde conseguiu chegar a nível profissional?
VA: Não posso dizer que foi difícil ou fácil, mas foi desafiante e claro que obrigou a trabalhar muito, diariamente, para provar que somos competentes e capazes de fazer tão bem ou melhor que qualquer homem na nossa posição. Mas felizmente, as mentalidades mudam e, paulatinamente, a sociedade começa a deixar de olhar para as pessoas, para os profissionais em função do sexo.
NT: Considera que há cargos/profissões que são mais bem executadas por mulheres/homens?
VA: Na minha opinião não se pode fazer a avaliação dessa forma, em função do sexo da pessoa, mas sim em função da sua sensibilidade e da sua competência. E posso dar um exemplo: as mulheres são normalmente rotuladas de “fadas do lar” porque cozinham, limpam e bordam ou fazem peças de roupa de lã, à mão. Eu nunca tive jeito nenhum para trabalhos manuais muito menos para bordar ou tricotar. Não tenho sequer paciência parra isso e sou mulher. Já na cozinha dou os belos toques quando tenho tempo, mas raramente faço “o gosto ao dedo” por falta de tempo livre. Dedico-me imenso ao meu projeto profissional e por essa razão a visa pessoal e familiar ressente-se um pouco…e recorre sempre aos cozinhados da minha mãe que todos os dias me confeciona as refeições.
NT: Alguma vez sentiu pressão para conseguir dar a mesma atenção à vida profissional e à vida familiar?
VA: Tenho um grande defeito, ou feitio, não sei, mas desde sempre coloquei a minha vida profissional como prioridade e apesar de um ou outro dissabor, e às vezes até um pequeno arrependimento, continuo a colocar a minha vida profissional como prioridade, a par da minha vida familiar, mas, sou forçada a confessar que exagero bastante na minha dedicação ao trabalho. Não sou nem nunca fui pressionada a fazê-lo por ninguém, mas tenho este grande defeito do perfecionismo e na superação de metas, que às vezes acaba por ser exagerado. Mas, como costumo dizer com frequência, após tanta dedicação a cada causa que abraço, um dia ainda vou receber uma medalha de cortiça… (risos).
NT: Como se descreve enquanto mulher?
VA: É sempre difícil falar de nós próprias, mas as palavras que melhor me definem são a determinação, a persistência, perspicácia e uma enorme dedicação a tudo aquilo em que me envolvo. Como não poderia deixar de ser sou vaidosa e tenho o coração ao pé da boca e digo sempre tudo o que penso. Tenho muitos defeitos e outras tantas virtudes, mas orgulho-me sobretudo de ser verdadeira em tudo o que faço.
NT: O que sente por ser uma mulher de relevo no seu concelho?
VA: Não sou nem nunca fui uma mulher de relevo no concelho da Trofa. Talvez tenha já desempenhado funções e tenha realizado trabalho em prol do concelho, na área do jornalismo por exemplo com a criação do jornal O Notícias da Trofa e da TrofaTv, enquanto jovem responsável pelo Grupo de Jovens de Santiago de Bougado, enquanto responsável das leituras na missa de sábado à noite na paróquia de Santiago de Bougado, ou mesmo enquanto mulher fundadora do Rotary Club da Trofa onde ingressei a convite do Sr. Adélio Serra, como primeira mulher rotária na Trofa. Também no associativismo fui a única mulher presidente da Assembleia Geral do Atlético Clube Bougadense, e não é muito comum ver mulheres a ocupar cargos de relevo no mundo do futebol, sou membro da mesa da Assembleia Geral da Escola de Atletismo da Trofa, fui membro durante quatro anos da Assembleia de Freguesia de Bougado (S. Martinho e Santiago) como independente, eleita nas listas do PS, mas estas são vivencias próprias de quem vive integrado numa sociedade, e não posso com isto considerar que tenha feito algo de relevante pelo meu concelho pois para mim todos são relevantes no seu papel na sociedade.
Neste momento integro o Movimento Lírio Azul, criado pela minha amiga, a Drª Odete Costa, e que tem vindo a protagonizar um excelente trabalho na região Norte de Portugal.
NT: O que acha do Dia Internacional da Mulher? Como vive esta data?
VA: Defendo a igualdade de oportunidades e tratamento entre homens e mulheres e por essa razão não dou grande relevo às comemorações do Dia Internacional da Mulher. Outro dos fatores que concorre para este facto talvez tenha a ver como a forma como fui educada e como, durante toda a minha vida, encarei a igualdade de género e, de certa forma, raras foram as vezes que por ser mulher senti discriminação. Vivo este dia como outro qualquer e raramente o celebro de forma entusiástica. É da praxe que talvez almoce ou jante com algumas amigas ou que esteja envolvida na organização de uma atividade para assinalar esta data.
NT: Como vê o papel da mulher na sociedade atual?
VA: Cada vez mais as mulheres são interventivas, ocupam cada vez de forma mais igualitária lugares de chefia e direção em empresas e instituições públicas e privadas e mostram que é possível conciliar a vida familiar e pessoal com a carreira profissional.
Eu considero que na sociedade atual em que vivemos, nomeadamente em Portugal, ser mulher é um privilégio por podemos ser mães, mulheres, profissionais, confidentes, desportistas. Por isso, eu, como mulher que sou, sou uma privilegiada.
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