Edição 458
Opinião: Desmontar a narrativa
É admirável a forma como uma simples permuta na liderança do governo (sim, em julho último, assistimos a uma permuta dissimulada na liderança do governo) conseguiu operar na sua narrativa oficial.
A irrevogável e surreal invenção de um vice Portas, o amuo e a discórdia teatralmente orquestrados para a promoção de Maria Luís Albuquerque a ministra das finanças, a irradiação por corrosão do independente Álvaro e a sua substituição por Pires de Lima, esvaziaram o PSD e em particular o seu líder Passos Coelho e cimentaram o populismo centrista no poder. O velho conhecido populismo de feira, gerador de belas e elaboradas fábulas capazes de transformar as derrotas em vitórias e as misérias em milagres económicos está de volta. Os oportunismos que a história já se encarregou de desmascarar no passado, parecem querer ficar novamente na moda.
Temos de estar mais atentos do que nunca. A nova narrativa do governo visa condicionar-nos a inteligência, pulverizar-nos a racionalidade, corroer-nos a paciência. Pretende iludir-nos pela ignorância, pelo cansaço e pela mentira. A velha máxima de uma mentira muitas vezes repetida … como todos bem sabemos, jamais se tornará uma realidade. A realidade verificável por todos, não poderia ser mais inversamente proporcional às inúmeras maravilhas e milagres narrados nos recentes discursos oficiais.
Os “sucessos” obtidos na redução dos juros da dívida, a ilusória redução do déficit, o fim do programa de ajustamento com sucesso, são verificáveis somente no domínio da retórica política. Não produziram até ao momento nenhuma evidência verificável na vida dos Portugueses. A esse nível, o incremento da pobreza, o aprofundar das desigualdades sociais, o desmantelamento do Estado Social, o encerramento de serviços públicos essenciais, fruto das políticas autoritárias e austeritárias seguidas, são a realidade diária e infelizmente cada vez mais difíceis de narrar.
O desemprego (em particular o desemprego jovem) continua em níveis nunca imagináveis. A economia apesar dos inúmeros elogios governamentais manifesta-se totalmente incapaz de contrariar a tendência de queda. As exportações para o estrangeiro continuam a ter como seu produto estrela os largos milhares de jovens licenciados que anualmente abandonam Portugal sem qualquer esperança no futuro. O desmantelamento do setor empresarial do Estado com as privatizações a preço de liquidação total continuam a engordar os lucros da alta finança mundial mas a emagrecer de morte a capacidade produtiva e tecnológica portuguesa. Os tempos de espera para consultas de especialidade ou cirurgias continuam desumanos e as horas nas urgências hospitalares atingem valores doentios e inenarráveis. As condições de trabalho dos professores, a sobrelotação das salas de aula e as condições físicas nas escolas públicas começam a ser só comparáveis à dos países terceiro-mundistas. O anunciado encerramento de centenas de repartições de finanças (e em breve de muitos outros serviços públicos essenciais às populações) por todo o país confirmam o sucesso na estratégia de distanciamento entre o poder e o povo e agudizam a desertificação e o isolamento do interior. O fantasma da redução dos direitos sociais e laborais continuam a amedrontar a nossa economia e a congelar o nosso quase inexistente mercado interno.
Um “milagre económico” que ameaça mais do que nunca transformar os cortes temporários de salários e pensões em amputações definitivas. A austeridade evoluiu de uma necessidade temporária para um fim em si.
A pouca credibilidade do governo vai-se afogando cada vez mais na sua falsa narrativa de sucesso. As contínuas contradições entre membros do governo sobre esta matéria confirmam o completo desnorte. À rutura entre o governo e o povo português, soma-se agora a estratosférico distanciamento entre o governo e a realidade. Florescem as narrativas típicas de um regime esgotado, vazio, em fim de ciclo, que nos trás à memória as cómicas narrativas de sucesso do ex-ministro da propaganda de Saddam.
Nos próximos tempos de pré campanha eleitoral para as eleições europeias e legislativas, novos narradores e novas narrativas surgirão todos os dias. Novas, de várias cores e para todos os gostos. É responsabilidade de cada um não ingerir narrativas envenenadas que apenas tentam maquilhar a crise e ocultar o rotundo falhanço do neoliberalismo durante os períodos eleitorais que se avizinham. É imperativo comparar as idiossincrasias das várias narrativas com o concreto da realidade verificável na sua vida quotidiana e decidir em consciência.
Gualter Costa
Coordenador Concelhio Bloco de Esquerda Trofa.
gualter.costa@outlook.com
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