Ano 2011
“A prumo se erguem as espinhas vertebrais dos HOMENS DIGNOS”
Excerto de um poema de Armindo Rodrigues
Meu pai gostava muito de azulejos. Não é de estranhar que à entrada da sala da nossa casa se depare com dez mosaicos diferentes. Todos com elementos decorativos e figurativos, excepto um. Este tem um poema de um grande pensador e poeta, Armindo Rodrigues, que por ser breve, vai aqui reproduzido: «A prumo se erguem os lírios / A prumo se erguem as espigas / A prumo se erguem os livros / postos em estantes em filas / A prumo se erguem as espinhas / vertebrais dos HOMENS DIGNOS». O Sr. Agostinho Ferreira Lopes era um HOMEM DIGNO. Porque era um homem bom, recto, culto, inteligente, leal. Um caso incomum em que o notável porte físico do homem é superado pela excelência do seu coração. Um homem de grandes e pequenas causas. Na sua vida, por diversas vezes defendeu intransigentemente o partido dos mais desfavorecidos.
Em variadas ocasiões, vestiu a protecção e tutela desta ou daquela criança, desta ou daquela viúva, deste ou daquele irmão que, por se encontrarem numa situação indefesa, seriam vítimas da ganância e do despudor dos algozes, não fora a sua presença e o seu apoio abnegado e generoso. O Sr. Agostinho F. Lopes foi sempre um homem corajoso. Desde cedo enfrentou o regímen ditatorial de Salazar, abraçando a razão da liberdade, tendo participado em quase todas as iniciativas da oposição democrática até ao 25 de Abril. Depois, foi vereador da comissão administrativa da Câmara Municipal de Santo Tirso e posteriormente representante na Assembleia de Freguesia de Guidões da força política que hoje equivale à CDU. Foi agricultor conceituado, muito ligado ao associativismo. Acima de tudo foi um exemplo como marido e um modelo como pai. A prova viva do referido encontra-se nos seus filhos. Já o disse uma vez publicamente, e reitero-o, “pela solidariedade sempre presente, pela amizade constante, pela dádiva generosa, pelos princípios que abraçam, pela educação que os caracteriza”.
No 31.º aniversário da revolução dos cravos, a comissão que organizou a festa em Guidões, entendeu simultaneamente homenagear o Sr. Agostinho e encarregou-me de dizer umas palavras. Tarefa problemática para mim. Não porque fosse complexo pronunciar-me sobre o Sr. Agostinho, a D. Mimi, a Casa Lopes ou os filhos. Quando o tesouro é inesgotável, fluida é a recolha. Mas, a ainda recente morte de meu pai, a amizade que os aproximava, a cumplicidade que os unia, os valores e princípios comuns que os norteavam, dificultaram-me a função. A voz embargava-se-me, as palavras teimavam a sair, os olhos turvavam-se-me. Mas lá foi, respirei fundo e, pausadamente, li o texto que escrevera. Para além da vida pública, de intervenção social e política exemplar do Sr. Agostinho que realcei, irresistivelmente levei-me pela emoção, e lá agradeci também a sua solidariedade inconfundível para com o meu pai e a minha mãe quando, “no meio dos dias cinzentos e tristes” do fascismo, determinadas pessoas de Guidões ligadas ao regime, só pelo facto de minha mãe, sendo professora primária, não frequentar a igreja e não ir à missa, pretenderam escorraçar os meus pais de Guidões. Graças ao Sr. Agostinho, como timoneiro, e às pessoas boas da terra, a injustiça não foi alcançada. Para o amigo leitor que nasceu depois de Abril de 1974, já em plena liberdade, conquistada à custa de muitos sacrifícios, mortes, prisões e lutas, sei que lhe é difícil enquadrar e apreender esta realidade. Mas ela é verdadeira, real…dolorosamente real. Depois desfilei 3 ou 4 histórias da minha vivência na casa Lopes.
Tudo isto para dizer que o Sr. Agostinho F. Lopes decidiu deixar-nos no passado dia 23 de Dezembro. Nesse dia, por volta das 12 horas, quis o acaso que ainda me esboçasse um breve sorriso, como quem se despede, sem que eu entendesse que se travava de uma despedida, pois o detentor dessa ciência rara e extraordinária era o Sr. Agostinho e não eu. Morreu, calma e serenamente, ciente do seu dever cumprido como homem, como marido, pai, avô, bisavô e como amigo. A sua frontalidade, elevação e nobreza, fê-lo granjear respeito, consideração e amizade em todo o espectro político-social, da direita à esquerda. O seu posicionamento foi sempre claro, independente, mas de esquerda. Foi um ser humano feliz. Porque nunca se resignou. Porque criou, fomentou, alicerçou e consolidou amor e amizade com muitos e com os seus. Porque a sua vida não se esgota em si mesma, deixou também as sementes que continuam e continuarão o seu exemplo.
Porque a prumo se ergueu a sua espinha vertebral. Morreu um HOMEM DIGNO.
Guidões, 26 de Dezembro de 2010.
Atanagildo Lobo
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